A complexidade dos nossos tempos nos leva a buscar espaços de pertencimento, afeto e confiança. Essa necessidade pode se tornar ainda mais forte quando se empreende uma jornada com propósito de protagonizar processos de transformação sistêmica. Agentes de Mudança1 buscam pares, alianças e diversas formas de colaboração para dar conta de endereçar os desafios diários que os envolvem, afinal, mudar e navegar sobre estruturas desiguais por design é uma tarefa que requer múltiplas competências e habilidades e pede, sobretudo, um tipo de potência que apenas a inteligência coletiva é capaz de gerar.
Porém, a justa busca por companhia e confiança para navegar essa complexidade pode desembocar na construção de bolhas de semelhantes e iguais, que se unem por afinidades e também por privilégios. O propósito pode ser nobre, bem estruturado e profundamente bem intencionado, porém, no fim do dia, acaba se tornando mais um espaço que reflete a estrutura de poder que desejamos modificar.
Construir comunidades diversas virou um slogan. Isso é excelente. Devemos celebrar. Porém, é preciso compreender que o compromisso com a diversidade requer a habilidade de assumir, reconhecer e lidar com o conflito e a divergência que surge de espaços qualitativamente e quantitativamente diversos de forma honesta, sincera e ética.
Isso requer método, compromisso e disponibilidade para mudar modelos mentais e operacionais. Os espaços de impacto e transformação sistêmica, muitas vezes, por melhor intencionados e bem estruturados que sejam, reproduzem as estruturas coloniais que originaram e ainda originam as desigualdades. Mudar isso pede a coragem de inovar e arriscar novas formas de sentir, pensar e fazer.
A comunidade de práticas Agente MUDA pode ser um exemplo factível dessa narrativa. Há exatos dois anos, em 11 de março de 2023, ela nascia, fundada por 40 lideranças sistêmicas reunidas em um processo imersivo de três dias. Essas lideranças, juntas, lidaram com o conflito que emergiu da ausência de diversidade nos espaços de transformação sistêmica de forma honesta e sincera e assumiram o compromisso de cocriar uma comunidade com objetivo de mudar as regras do jogo e acelerar a transição para um Brasil mais equitativo e regenerativo, a partir dos pilares do antirracismo e da decolonialidade.
De fato, as primeiras horas de existência dessa comunidade, foram marcadas pela assunção de compromissos estruturais: para construir novas economias e novas regras do jogo, é preciso transcender a herança colonial que demarcou a construção do sistema atual que reproduz a desigualdade estrutural há séculos. É mandatório ter a diversidade presente em todo o processo. É preciso assumir consciência do que significa o privilégio branco e seu consequente modo de operar para trazer a potência coletiva da diversidade para a mesa, assumindo o compromisso com o antirracismo e a decolonialidade como meios para chegar no nosso objetivo. Em um país como o Brasil, isso é premissa de qualquer processo de mudança sistêmica.
Hoje, após dois anos, esse compromisso sustenta uma comunidade viva e vibrante. Sim, podemos afirmar que a Agente MUDA é e se tornou uma comunidade de práticas com o propósito de conectar lideranças com visão sistêmica dos setores público, empresarial e sociedade civil organizada para que construam confiança, aprendam e pratiquem juntas formas concretas de combater desigualdades estruturais, para gerar evidências empíricas que impulsionem e inspirem a mudança das regras do jogo para acelerar a transição para um Brasil mais equitativo e regenerativo.
Antes que um mote ou palavra de efeito, “mudar regras do jogo” é uma categoria econômica: implica mudar instituições, normas formais e informais, que definem como o sistema econômico decide e opera, se constitui. Essa audácia tem fundamento: há evidências históricas disponíveis que demonstram que para gerar modificação na estrutura do sistema é necessário modificar seu desenho, suas normas de funcionamento e seus paradigmas. Do contrário, operam-se transformações valiosas, relevantes, necessárias, a partir de projetos e programas pontuais incrementais que permanecem atuando como um remédio aos sintomas gerados pelas falhas de desenho do sistema.
E por que construir uma comunidade de prática? Para reimaginar o sistema e praticar formas de mudança em suas estruturas, é preciso garantir condições para a construção de novas formas de pensar, sentir e fazer, que podem nutrir novos paradigmas e novas instituições. Comunidades de prática tem como objetivo reunir pessoas diversas e com atuações diversas pelo desejo compartilhado de resolverem juntas um problema comum e complexo. Podem ser espaços seguros para experimentar e nutrir formas inovadoras de construção da vida. Garantem aprendizagens coletivas de forma metodológica, fomentam a circulação de recursos de diversas naturezas e sobretudo, constroem tudo isso a partir de relações de confiança.
Construir confiança implica abrir espaço para a relação. A relação acontece a partir da liberação das emoções e da existência do afeto. É preciso sentir-se seguro para expressar-se emocionalmente. Afeto vem do verbo afetar-se. Afetar-se, conectar-se permitem CON FIAR, fiar a vida, construir a existência COM pares, em espaços seguros para vulnerabilizar-se, entregar-se e sentir-se reconhecido e pertencente. A maior parte de nossas instituições marginalizaram de suas estruturas o que tem de mais potente e transformador na comunidade humana: relações genuínas, profundas e colaborativas. As relações fundam e moldam instituições.
Porém, isso não é tudo.
O que torna a Agente MUDA uma experiência política alinhada com o espírito do nosso tempo são seus pilares e valores fundamentais: ancestralidade, equidade para todas as pessoas e colaboração extrema. Equidade e colaboração extrema são palavras bastante repetidas nos processos que envolvem mudança sistêmica.
O que demarca alguma originalidade da Agente MUDA é a tônica e o tom que a ancestralidade confere aos demais pilares e todo funcionamento dessa comunidade, moldando sua metodologia de forma estruturante, permitindo experiências decoloniais. Honrar o passado para construir o presente e desenhar o futuro trouxe para essa comunidade uma experiência de conexão com o sagrado presente na cosmologia ancestral que transcende sistemas de crenças e religiões. A presença de lideranças indígenas e negras de forma numericamente equitativa permitiu que compreendêssemos o poder da cosmologia ancestral, como uma metodologia, uma ferramenta e uma experiência que permite que as pessoas se conectem de forma profunda com o que as torna comuns e semelhantes, não obstante a diversidade que nos constitui de forma ontológica e pode nos separar e marginalizar de forma estrutural. A conexão com a ancestralidade como pilar, valor e método, permite iluminar o sistema racional e construir novos modelos mentais para liderar a transição.
A equidade para todas as pessoas, ao lado da ancestralidade, garante que a diversidade seja compreendida como riqueza e premissa, não como risco e ameaça. Permite que conflito seja acolhido, reconhecido e tratado através da tecnologia social da plataforma da conexão. Essa plataforma foi empiricamente construída e testada como um método eficaz para gerar e sustentar o afeto e a confiança como estruturas portantes da Agente MUDA. O encontro traumático e doloroso entre diferentes e entre pessoas que foram marginalizadas por um sistema que expele e repele a diversidade é tratado pela conexão e pelo afeto como método para construir, nutrir e sustentar confiança.
O resultado desses ingredientes articulados é que o compromisso com o pilar da colaboração extrema se torna orgânico, como um desdobramento e uma necessidade ontológica da comunidade.
Em dois anos de Agente MUDA, percebe-se a emergência de diversas formas de colaboração, tangibilizadas em práticas conjuntas orientadas a mudar regras do jogo em diversas nuances, perspectivas e matizes, com toda riqueza de interpretações e possibilidades múltiplas de construção. Acolher essa diversidade e nutri-la é complexo, mas é essencial para uma colaboração profunda e transformadora, na qual cada individualidade é valorizada. Trata-se de um processo contínuo e de uma meta sem linha de chegada.
Neste 11 de março, celebramos 2 anos do dia em que as 40 primeiras lideranças sistêmicas, presentes na primeira imersão da Agente MUDA decidiram juntas constituir esse laboratório vivo de mudanças sistêmicas. Hoje, a comunidade conta com 108 lideranças, presentes em 17 estados, nas cinco regiões do Brasil. O compromisso com a diversidade é um caminho sem linha de chegada: 81% das lideranças Agentes MUDA pertencem a grupos minorizados, 62% estão colaborando e 80% se sentem pertencentes.
É apenas um microcosmos de mudança sistêmica que pilota novas formas de fazer política em uma comunidade de práticas que pretende expandir-se por todos os cantos do Brasil nos próximos 2 anos. É verdade que o atual contexto é pouco favorável a um projeto com esse nível de complexidade, mas o compromisso em mantê-lo e fazê-lo crescer permanece genuíno e com estruturas bem colocadas.
É um caminho possível, configurado a partir das fissuras do sistema atual. Comunidades são ilhas de resistência e de sobrevivência, nas quais se encontra oxigênio e nutrição para construir novas formas de vida no mundo de hoje.
Pelas palavras de Bàyó Akolomafe, proferidas em seu encontro recente com a comunidade Agente MUDA:
“Talvez eu não tenha privilégios da mesma maneira que você, mas existem outras maneiras de ter poder no mundo. Eu estou na margem e existe poder nas margens”.
A pergunta sobre até onde esse poder marginal nos levará ainda não foi respondida. Porém, a aposta é seguir a provocação de Ailton Krenak: “A minha provocação sobre adiar o fim do mundo é exatamente sempre poder contar mais uma história. Se pudermos fazer isso, estaremos adiando o fim”.
Narrativas mudam o mundo. Por isso, estamos felizes ao celebrar 2 anos de Agente MUDA, um laboratório vivo de produção de novas histórias, narradas e praticadas nos quatro cantos do Brasil. É só o começo.
De Maria Helena Faller e Ricardo Ramos2
- A compreensão de Agentes de Mudança adotada nesse texto é de pessoas que buscam, intencionalmente, estar a serviço e liderar processos de transformação sistêmica, com o objetivo de construir um mundo mais equitativo e regenerativo. ↩︎
- Maria Helena e Ricardo Ramos são lideranças da Din4mo Lab, organização responsável pela realização da Agente MUDA. ↩︎