Reflexões sobre conceito e prática

Ao desenvolver uma proposta de reflexão sobre decolonialidade, torna-se essencial compreender como estruturar este pensamento para elucidarmos tanto os aspectos constitutivos do conceito como sua real aplicação na realidade. Considerando a crescente, mas também recente capilaridade da ideia de decolonialidade no setor de impacto, acreditamos que trazer dimensões da experiência e também conceituais, tornará essa jornada mais elucidativa.

A relação entre decolonialidade e terceiro setor, emerge de reflexões que associam o conceito a diversas palavras-chave, como: filantropia, diversidade e inclusão, propósito, prática, mudança de olhar, movimentação política, construção de uma nova identidade e posicionamento, crise climática, entre outras.

Já que a decolonialidade pode ser concebida como resistência à lógica da colonialidade e seus efeitos materiais, epistêmicos e simbólicos, acreditamos que essas associações precisam ser consideradas, visto que é necessário compreender a estrutura desse pensamento tanto por aspectos epistemológicos, como na sua real aplicação na realidade, perpassando por toda essa gama de palavras e seus respectivos significados e aplicações.

Como uma boa Agente MUDA, lembrei que a experiência, ação e reflexão individual podem inspirar o aprendizado coletivo e a mudança sistêmica, principalmente quando analisamos aspectos que envolvem categorias analíticas importantes como gênero, raça, classe social e localização geográfica.

Sob essa ótica e ocupando lugares de co-construção para futuros possíveis e de múltiplas vozes, a guinada contra-colonial vem ultrapassando os muros da academia e dos movimentos sociais e políticos, nos permitindo compreender como vozes historicamente marginalizadas têm contribuído historicamente para a ampliação do debate e a inclusão de novas perspectivas no campo do conhecimento e da ação prática que transforma a realidade.

Além das contribuições teóricas da ciência e dos estudos sociais, a decolonialidade representa essa ruptura de perspectiva, um dedirecionamento na forma de compreender a realidade e as estruturas que se apresentam como universais e cristalizadas pela chancela do tempo.

Lembro da primeira vez que me vi pensando nesse conceito ao me matricular na disciplina de Sociologia Latino-Americana e ao ter contato com ele em uma perspectiva acadêmica e formativa. Eu, que sempre questionei se uma jovem de família humilde poderia ser uma intelectual ou fugir da trajetória/destino de ser “massa marginal”1 , operando as engrenagens do capitalismo moderno, percebi que vozes como a minha há muito vêm contribuindo para que todas as vozes sejam incluídas.

Essas dimensões sistêmicas e epistemológicas coloniais criaram lógicas de opressão, que são reproduzidas ainda hoje, essas por sua vez moldam as subjetividades e desenham a nossa estrutura social. O olhar decolonial nos provoca a questionar essas lógicas e a transformar nossa percepção, nos convidando a refletir sobre como o modelo econômico, político e social, apresentado historicamente como universal, foi na verdade construído para favorecer alguns grupos enquanto excluía e explorava outros.

Essa estrutura de dominação opera em múltiplas dimensões: afeta a produção do conhecimento (colonialidade do saber), impacta a subjetividade dos indivíduos (colonialidade do ser) e consolida até hoje desigualdades estruturais no âmbito econômico e político (colonialidade do poder).

Sob essa nova perpectiva e direcionamento, ao inserir a decolonialidade como propósito, estamos centralizando a experiência corporificada e geolocalizada, reconhecendo que a colonialidade sequestrou ancestralidades, memórias e humanidades e para a construção de futuros possíveis não podemos mais enxergar através de antolhos2.

A superação desse passado que assombra o presente, demanda uma mudança radical que incorpore não apenas uma revisão conceitual, mas uma prática de desestabilização de padrões nunca antes questionados.

Se tá ruim, a gente MUDA

Um dos elementos fundamentais nessa trajetória em construção pela ruptura de paradigmas eurocêntricos e excludentes, se expressa pela ação prática que inclui: incorporação de vozes historicamente subalternizadas, a diversificação agentes que constituem as estruturas de poder, a valorização multicultural e o trabalho para restituição de direitos historicamente negados para grupos sociais marginalizados. Perspectivas que resistiram e foram centrais nos movimentos de libertação colonial continuam a alimentar essa luta contra-hegemônica. Lélia Gonzalez3, ao propor o conceito de amefricanidade4, chama atenção para a necessidade de reconstruir entendimentos que são simultaneamente sociais, raciais, econômicos, epistêmicos e geolocalizados.

“Assumindo nossa Amefricanidade, podemos ultrapassar uma visão idealizada, imaginária ou mitificada da África, e ao mesmo tempo, voltar o nosso olhar para a realidade em que vivem todos os amefricanos do continente.” parte 1, p.136

Ao relacionar a decolonialidade ao setor de impacto no contexto brasileiro, percebe-se que estamos trilhando um caminho onde a lógica desenvolvimentista e a adoção acrítica de modelos ocidentais já não são amplamente aceitos. Estruturas baseadas na produção incessante, na violência institucionalizada e no esgotamento de recursos humanos e naturais, demonstram essa incapacidade de co-construir sociedades equitativas e ambientalmente responsáveis. Nesse sentido, a decolonialidade transpõe do campo intelectual para o prático cotidiano, sendo a base que pode sustentar comunidades, instituições e formas consistentes de mudança da realidade.

Mais do que um conceito, a decolonialidade se configura como uma prática que exige cocriação e vigilância constante. Acreditamos que não basta apenas ocupar espaços; é fundamental garantir condições equitativas para que grupos historicamente marginalizados possam exercer influência real e redefinir estruturas de poder. A modernidade colonial não apenas excluiu, mas inviabilizou ativamente essas presenças, restringindo-as a posições subalternizadas. Romper com essa lógica exige um esforço contínuo para desnaturalizar padrões mentais e comportamentais que sustentam a colonialidade, promovendo novas formas de existência e participação social.

Nessa construção, que só se torna efetiva na coletividade, a compreensão da interdependência e da potência de nossas conexões mútuas — onde cada ação reverbera no tecido comum da existência — nos permite questionar e desestabilizar as hierarquias impostas5. Superar as barreiras da individualidade e da rivalidade, que a lógica colonial nos ensinou como naturais, é parte desse processo.

Todo esse movimento evoca a mudança e se entrelaça ao setor de impacto ao desafiar estruturas estabelecidas e criar inovação. Mudar as regras do jogo significa não apenas incluir, mas transformar as bases do sistema econômico e institucional. Ao abraçarmos a multiculturalidade, a ancestralidade e as tensões que essas categorias carregam, conseguimos explorar abordagens mais complexas e contextualmente situadas para os desafios econômicos, políticos, sociais e ambientais. Dessa forma, novas experiências e soluções emergem, tensionando normas sociais e promovendo mudanças estruturais.

Aliança, protagonismo e empoderamento de lideranças!

Em uma perspectiva decolonial, o ato de se ver no outro, e a ação de pensar em rede, são mais do que ferramentas de progresso no que tange convívio social, mas também oferecem o caminho de pensar a possibilidade de novas realidades que colaboram para uma economia de impacto positivo. No livro O Espírito da Intimidade, da escritora Sobonfu Somé, é possível perceber de uma forma explícita a necessidade que a humanidade possui de ter a comunidade como uma ferramenta de apoio na construção de relacionamentos, em uma sociedade que muita das vezes prima apenas pela valorização do individual.

Este tipo de pensamento é entendido como o centro da Aliança pelo Impacto. A crença de que o ato de nos relacionar com o outro nos permite entender o que é comum em nós, e assim seguirmos em comunhão. No dicionário, a palavra Aliança é identificada como o ato ou efeito de aliar-se. É um pacto, um ajuste, um acordo. É a união harmoniosa de coisas diferentes entre si. Este entendimento reúne o que mais acreditamos acerca do trabalho que realizamos: Juntos, nosso impacto é maior! Essa frase, que está presente em todas nossas comunicações, reforça o propósito de existir da organização.

E se juntos somos maiores, é porque reconhecemos que toda transformação começa pelo fortalecimento das pessoas. A Aliança pelo Impacto e a Comunidade Agente MUDA, são organizações que veem se construindo com o objetivo de impulsionar o protagonismo de organizações e agentes do ecossistema de impacto socioambiental, e dessa forma garantir o protagonismo das mesmas em seus mais diversos nichos de atuação.

Como diz Mano Brow, “cada lugar uma lei, cada lei uma razão, cada razão uma crença, uma cultura, uma nação”. Esse olhar atento às realidades diversas é o que move a aliança. Reconhecer o valor e a potência de cada liderança, em seus próprios territórios, é um ato político e de resistência. Afinal, ninguém melhor do que quem vive a realidade de um setor para liderar os caminhos de uma mudança. Ser uma organização facilitadora no processo de empoderamento dessas lideranças, é permitir que não sejam apenas convidadas, mas que se entendam como agentes significativos para garantir transformações reais.

E essa é uma ação decolonial. É uma ação para mudar a lógica do que um dia foi considerado padrão. A Aliança pelo Impacto acredita que, assim como a música dos racionais ecoa das quebradas para o mundo, as lideranças que nascem, ou desenvolvem soluções de impacto, em territórios periféricos, indígenas, quilombolas, e de tantas outras resistências, devem ecoar e influenciar as estruturas de poder e tomadas de decisão. Porque a voz ativa ainda ecoa, e quando ecoa em Aliança, o impacto é válvula de transformação.

De Italo Carvalho e Larissa Lopes

  1. Conceito trazido por Lélia Gonzalez, no Ensaio 1: Cultura, Etnicidade e trabalho: Efeitos linguísticos e políticos da exploração da mulher. P.25-44. ↩︎
  2.  Antolhos é um acessório que se coloca na cabeça de animal de montaria ou carga para limitar sua visão e forçá-lo a olhar apenas para a frente, e não para os lados, evitando que se distraiam ou se espantem e saiam do rumo ↩︎
  3. Lélia Gonzalez (1935–1994) foi uma intelectual, ativista e escritora brasileira cujas contribuições são fundamentais para os debates sobre raça, gênero e colonialidade na América Latina. ↩︎
  4. O conceito de Amefricanidade trazido por Lélia em Por um feminismo afro-latino-americano (2020), propõe uma identidade forjada na resistência, desafiando as hierarquias coloniais que persistem na construção do conhecimento e nas práticas institucionais. ↩︎
  5. A comunidade Agente MUDA é uma comunidade de práticas empenhada em combater desigualdades. Estabelecemos relações de confiança, conectamos e instrumentalizamos lideranças com visão sistêmica para acelerar a transição para uma economia mais equitativa e regenerativa e assim mudar as regras do jogo. ↩︎
Scroll to Top