“Eu tenho raiva da fome. Queria ver a fome presa. Atrás das grades.”
Carolina Maria de Jesus (Quarto de despejo)
O Brasil saiu novamente do Mapa da Fome — e o que isso significa?
O país superou os indicadores da fome pela primeira vez em 2014 em função de um conjunto de políticas públicas, mas o enfraquecimento das mesmas nos colocou novamente no Mapa da Fome no triênio de 2019–2021. O relatório anual O Estado da Segurança Alimentar e Nutrição no Mundo, elaborado em colaboração por várias agências da ONU, incluindo a FAO, utiliza o indicador de Prevalência de Subnutrição (PoU) para medir a porção da população de cada país que está cronicamente subnutrida (FAO et al., 2025). As estimativas nacionais são apresentadas como médias de três anos, enquanto os agregados regionais e globais são anuais. Os relatórios anuais consideram “fome” sinônimo de subnutrição crônica — que é a condição de um indivíduo cuja ingestão alimentar habitual é insuficiente, em média, para fornecer a energia dietética necessária para manter uma vida normal, ativa e saudável (FAO et al., 2025).
Para sair do Mapa da Fome, é necessário que o país possua uma média trienal de PoU menor que 2,5%. No primeiro triênio deste milênio, o Brasil possuía uma PoU de 10,4%, o que correspondia a 18,5 milhões de pessoas e, em seguida, o país entrou em uma decrescente significativa, ano após ano, que resultou na saída do Mapa da Fome no triênio de 2013–2014. No triênio de 2019–2021, o Brasil registrou um aumento no PoU, chegando a 2,8%. Já no triênio mais recente (2021–2023), o país voltou a registrar uma PoU inferior a 2,5%, saindo novamente do Mapa da Fome (FAO et al., 2025).
Ok, mas isso faz o Brasil colocar a fome atrás das grades?
Não. Apesar dos avanços, o Brasil possui uma população enorme e um indicador que aponta que temos menos de 5,3 milhões de pessoas com subnutrição crônica — o que ainda revela que há pessoas passando fome (FAO et al., 2025). Além disso, há outro indicador produzido pela ONU que indica desafios relacionados à alimentação da população: a Escala de Experiência de Insegurança Alimentar (FIES). O conceito de insegurança alimentar é definido pelo acesso limitado a alimentos em nível individual ou familiar, devido à falta de dinheiro ou outros recursos. O indicador rastreia o progresso em relação ao objetivo de garantir o acesso de todas as pessoas a alimentos seguros, nutritivos e suficientes durante todo o ano. A insegurança alimentar pode ser classificada em função da sua severidade: grave ou moderada1 (FAO et al., 2025).
Em 2023, a insegurança alimentar grave no Brasil era de 0,7%, enquanto a moderada ou grave era de 13,3%. Em 2024, os dados aumentaram para 3,4% de insegurança grave e 13,5% de insegurança alimentar moderada ou grave. Ou seja, ainda temos aproximadamente 28,62 milhões de pessoas que enfrentam incertezas sobre conseguir ter alimentos, ter alimentos o suficiente ou/e de qualidade para consumir. Pior: temos 7,21 milhões de pessoas com a mesma fome de Carolina Maria de Jesus:
“Ontem não comemos. Hoje, quando levantei, não tinha nada para dar às crianças.”
Como o Blended Finance pode ser uma abordagem catalisadora nesse processo de combate à fome?
Além de políticas públicas estruturadas e da mobilização social, o enfrentamento sustentável da fome também depende de soluções financeiras capazes de escalar projetos sistêmicos. Nesse contexto, o blended finance emerge como uma estratégia eficaz para mobilizar capital privado para fins públicos, diluindo riscos e promovendo investimentos em segurança alimentar, agricultura familiar e cadeias produtivas inclusivas.
O blended finance combina fontes de capital com diferentes perfis de risco e retorno — como recursos públicos, filantrópicos e comerciais — para viabilizar investimentos em áreas que tradicionalmente enfrentam baixa atratividade ao setor privado. Essa abordagem permite estruturar instrumentos financeiros que reduzem a percepção de risco e alavancam recursos adicionais para causas estruturais.
Exemplos que mostram o potencial do blended finance na agenda da ODS 22:
- GAFSP – Global Agriculture and Food Security Program (Banco Mundial): Estruturado como um fundo multilateral com recursos de governos e fundações, o GAFSP já alocou mais de US$ 2 bilhões desde 2010 para melhorar a segurança alimentar e a nutrição em países em desenvolvimento, com foco em pequenos agricultores. O fundo utiliza blended finance para combinar doações com instrumentos de dívida concessionais e financiamento comercial, maximizando o impacto dos investimentos.
- IDH Farmfit Fund: Gerido pela organização holandesa IDH, este fundo utiliza capital concessionário de doadores para atrair investimento privado em soluções de financiamento rural para pequenos agricultores. Ao reduzir o risco de crédito percebido, o fundo tem apoiado a integração de pequenos produtores em cadeias de valor agrícolas mais resilientes e lucrativas.
- Fundo Convergente para a Segurança Alimentar na África (NEPAD & AUDA): Embora regionalmente voltado ao continente africano, o fundo é um benchmark de como blended finance pode sustentar políticas públicas de alimentação escolar, segurança nutricional e apoio à produção agroecológica em territórios vulneráveis. A estruturação foi feita com apoio de bancos de desenvolvimento e mobilizou capital catalítico para alcançar metas da ODS 2 e ODS 13.
Oportunidade para o Brasil:
O Brasil pode se beneficiar da criação de mecanismos financeiros blended que articulem bancos de desenvolvimento, cooperativas, filantropia e setor privado, visando:
- Estruturar garantias para concessão de microcrédito a agricultores familiares;
- Financiar programas integrados de alimentação escolar com compra local de produtores vulneráveis;
- Apoiar hubs logísticos e agroindustriais que fortaleçam cadeias de abastecimento em áreas com altos indicadores de insegurança;
- Viabilizar tecnologias de agricultura regenerativa e sistemas agroflorestais com retorno de impacto mensurável.
Para isso, é fundamental uma visão integradora de diferentes organizações com um único objetivo: elevar o nível de cidadania em nosso país.
De Agatha Garmes3 e Douglas Souza4
Referências
BRASIL. Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE. Portaria IBGE‑1.041, de 28 de agosto de 2024, publicada no Diário Oficial da União, Seção 1, n. 167, de 29 ago. 2024, p. 163.
FAO; IFAD; UNICEF; WFP; WHO. O estado da segurança alimentar e da nutrição no mundo 2025: enfrentando a alta inflação dos preços dos alimentos para segurança alimentar e nutrição. Roma: FAO, 2025. DOI: 10.4060/cd6008en.GAFSP – Trustee Report (World Bank): https://fiftrustee.worldbank.org/content/dam/fif/funds/gafsp/TrusteeReports/GAFSP%20Trustee%20Report%20-%20June%2030%202024.pdf
GAFSP – Annual Report 2021: https://www.gafspfund.org/sites/default/files/2022-09/GAFSP_2021-Annual-Report_0.pdf
G1. Brasil sai novamente do Mapa da Fome, segundo relatório da ONU. G1, São Paulo, 28 jul. 2025. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2025/07/28/brasil-sai-novamente-do-mapa-da-fome-segundo-relatorio-da-onu.ghtml. Acesso em: 05 ago. 2025.
IDH Farmfit Fund (Overview): https://www.idhsustainabletrade.com/farmfit-fund/
AUDA-NEPAD – Financiamento inovador e blended finance:
https://www.brookings.edu/articles/delivering-the-africa-of-the-future-auda-nepads-role-in-achieving-agenda-2063-and-the-sdgs/
Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome. Brasil sai do Mapa da Fome da ONU: conquista histórica reflete políticas públicas eficazes. Publicado em 28 jul. 2025. Disponível em: https://www.gov.br/mds/pt-br/noticias-e-conteudos/desenvolvimento-social/noticias-desenvolvimento-social/brasil-sai-do-mapa-da-fome-da-onu-conquista-historicas-reflete-politicas-publicas-eficazes. Acesso em: 05 ago. 2025.
- A Escala FIES distingue dois níveis de severidade: (i) insegurança alimentar moderada, quando as pessoas enfrentam incertezas sobre sua capacidade de obter alimentos e reduzem a qualidade e/ou quantidade do que consomem; e (ii) insegurança alimentar grave, quando as pessoas ficam sem comida em alguns momentos e, no pior dos casos, passam um dia inteiro ou mais sem comer. A prevalência de insegurança alimentar grave e de subnutrição são indicadores de restrições severas no acesso a alimentos. ↩︎
- ODS 2: Fome zero e agricultura sustentável – Acabar com a fome, alcançar a segurança alimentar e melhoria da nutrição e promover a agricultura sustentável. ↩︎
- Graduada em Administração Pública pela Fundação Getúlio Vargas (FGV-EAESP), atuou em educação popular para preparação de estudantes de baixa renda ao ensino superior e promoveu ações de equidade racial no ambiente universitário. Tem experiência em consultoria para o terceiro setor, conduzindo redesenho de processos e diagnósticos institucionais. Nos últimos anos, desenvolveu pesquisas no campo das políticas públicas sobre desigualdades sociais, justiça racial, racismo territorial e ambiental, acesso a equipamentos culturais e orçamento público de cultura, em iniciativas da FGV Conexão Local, FGV Direito, CNPq e Observatório Ibira 30. Atualmente é Analista de Comunicação, Advocacy e Políticas Públicas na Din4mo. ↩︎
- Formado em Administração pela Universidade Federal de Itajubá, possui Master in Finance and Economics pela FGV e MBA pela ESMT Berlim, na Alemanha. Durante o MBA atuou como estagiário em um fundo de impacto com sede em Singapura, o Sweef Capital. Nos últimos anos vem desenvolvendo estudos em escala nacionnal sobre o desenho de estruturas híbridas de financiamento para projetos inovadores ↩︎